Quando o Silêncio Dói: Avaliar e Cuidar da Dor na Pessoa Não Comunicante

Quando o Silêncio Dói Avaliar e Cuidar da Dor na Pessoa Não Comunicante

A dor é uma experiência profundamente individual, complexa e muitas vezes difícil de descrever. Quando se trata de pessoas capazes de comunicar verbalmente, a tarefa de identificar, classificar e tratar a dor já exige sensibilidade e rigor clínico. Contudo, quando a pessoa não consegue expressar o seu sofrimento — como frequentemente acontece em idosos frágeis, pessoas com demência, após um acidente vascular cerebral (AVC) ou noutras situações de défice cognitivo ou comunicacional — a avaliação da dor torna-se um desafio ainda maior.

Apesar destas dificuldades, é fundamental lembrar que a dor não comunicada não é uma dor inexistente. O facto de alguém não conseguir verbalizar o que sente não reduz a legitimidade do seu sofrimento; pelo contrário, aumenta a responsabilidade dos profissionais de saúde e cuidadores em reconhecer sinais subtis, adoptar métodos de avaliação adequados e intervir atempadamente.

Este texto explora a complexidade da dor na pessoa não comunicante, oferecendo uma reflexão estruturada sobre as dificuldades de identificação, as ferramentas disponíveis, o papel dos cuidadores e a importância de uma abordagem humanizada e interdisciplinar.

1. O Desafio da Dor Silenciosa
A dor na pessoa não comunicante está envolta num silêncio forçado — não por ausência de sensações, mas por limitações na capacidade de as expressar. Em idosos mais fragilizados, em pessoas com demência moderada a avançada ou após um AVC, a comunicação verbal pode estar comprometida total ou parcialmente. A pessoa pode compreender o que está a sentir, mas não encontrar palavras; pode sentir dor mas não a reconhecer cognitivamente; ou pode simplesmente não ter controlo ou energia para manifestar o desconforto.

Para os cuidadores formais e informais, isto cria um dilema clínico e emocional: como reconhecer a dor quando a pessoa não a pode descrever?

A ausência de queixa verbal não pode ser interpretada como ausência de dor. Estudos mostram que muitos idosos com défices cognitivos sofrem dor crónica não tratada, com impactos severos na sua qualidade de vida. A subavaliação e o subtratamento são realidades persistentes que exigem maior consciência e formação humanizada.

2. Grupos de Maior Vulnerabilidade
A dor na pessoa não comunicante surge com maior frequência em determinados grupos, cada um com desafios próprios:

2.1 Idosos Frágeis
O envelhecimento altera a forma como a dor é percebida, processada e expressa. Além disso, múltiplas comorbilidades, polimedicação, perda sensorial e declínio cognitivo comprometem a capacidade de descrever sintomas. Muitos idosos acreditam ainda que a dor é “natural da idade”, deixando de a relatar.

2.2 Demência
Nas demências — como Alzheimer, demência vascular ou corpos de Lewy — o processo de comunicação deteriora-se progressivamente. Em fases avançadas, a pessoa pode não compreender as perguntas sobre dor ou responder de forma incoerente. Ainda assim, as estruturas neurais responsáveis pela dor permanecem activas, mantendo a experiência dolorosa.

2.3 Pessoas após AVC
O AVC pode causar afasia, disartria ou défices cognitivos que dificultam a comunicação verbal. Além disso, pode provocar dor neuropática, espasticidade, dores musculares ou cefaleias persistentes, aumentando a probabilidade de sofrimento silencioso.

2.4 Doentes em estado crítico ou com alterações do nível de consciência
Pessoas sedadas, com ventilação mecânica ou em estados de consciência diminuída não conseguem relatar verbalmente a dor, mas continuam a senti-la. Nestes casos, a observação é essencial.

Quando o Silêncio Dói Avaliar e Cuidar da Dor na Pessoa Não Comunicante

3. Sinais e Indicadores Não Verbais
A avaliação da dor na pessoa não comunicante assenta sobretudo na observação rigorosa, sistemática e empática. Os sinais podem ser subtis, mas formam um padrão quando analisados em conjunto.

3.1 Expressões faciais

  • Caretas, franzir do sobrolho, apertar dos olhos
  • Lábios trémulos ou apertados
  • Expressão de medo ou ansiedade

3.2 Comportamento

  • Agitação repentina ou inquietação
  • Afastamento social e retraimento
  • Aumento ou redução de movimentos
  • Resistência ao toque ou manipulação

3.3 Vocalizações

  • Mesmo que a pessoa não fale, pode manifestar dor através de:
  • Gemidos, choramingos
  • Sons guturais ou suspiros profundos
  • Aumento do tom ou da frequência respiratória

3.4 Alterações fisiológicas

  • Taquicardia
  • Tensão arterial elevada
  • Sudorese
  • Palidez ou rubor
  • Alterações no padrão de sono

3.5 Alterações funcionais

  • Redução da mobilidade
  • Recusa ou dificuldade na alimentação
  • Perda de autonomia em atividades básicas

Nenhum destes sinais isoladamente confirma dor, mas o conjunto deve alertar para a necessidade de avaliação mais aprofundada.

4. Escalas e Métodos de Avaliação Adaptados
Na ausência da autoavaliação verbal. As escalas de observação são ferramentas essenciais para ajudar na decisão clínica. Entre as mais utilizadas encontram-se:

4.1 PAINAD (Pain Assessment in Advanced Dementia)
Muito utilizada em demência avançada, avalia:

  • Respiração
  • Vocalização
  • Expressão facial
  • Linguagem corporal
  • Consolabilidade

4.2 Abbey Pain Scale
Simples e rápida, adequada a vários contextos de incapacidade cognitiva.

4.3 ESCID (Escala de Comportamentos Indicadores de Dor)
Utilizada em contexto hospitalar e institucional.

4.4 BPS (Behavioral Pain Scale)
Adequada a doentes ventilados ou sedados, por exemplo em cuidados intensivos.

Embora não substituam o julgamento clínico, estas escalas promovem uniformidade, reduzem o risco de subavaliação e permitem monitorizar a resposta ao tratamento.

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5. O Papel Fundamental dos Cuidadores
Os cuidadores formais (enfermeiros, médicos, auxiliares) e informais (familiares) desempenham um papel crucial na identificação da dor.

5.1 Conhecimento da linha basal
Quem convive diariamente com a pessoa é quem melhor reconhece alterações subtis. Pequenas mudanças no comportamento podem indicar dor, mesmo antes de sinais evidentes.

5.2 Comunicação entre equipas
A partilha de informação é essencial. Registar comportamentos, descrever situações em que a pessoa pareceu desconfortável e comunicar de forma sistemática contribui para uma abordagem mais eficaz.

5.3 Sensibilidade e empatia
A dor não comunicada exige um olhar treinado, mas também um olhar humano. Cuidar é interpretar, ouvir o que não é dito, valorizar gestos e silêncios.

6. Tratamento da Dor: Intervir Mesmo na Incerteza
Um dos maiores receios dos profissionais é tratar dor que “não se sabe se existe”. Contudo, em muitos casos, a não intervenção é mais prejudicial que o risco de tratar.

Se há sinais consistentes e persistentes de desconforto, justifica-se uma intervenção terapêutica gradual e monitorizada. O objectivo é aliviar o sofrimento, não sedar excessivamente. Para isso, deve-se considerar:

  • Analgesia escalonada
  • Tratamento da causa (infeção, obstipação, feridas, espasticidade)
  • Medidas não farmacológicas (massagem suave, posicionamento, aplicação de calor ou frio, ambiente calmo)

A resposta à intervenção pode ser, por si só, um indicador diagnóstico.

7. Uma Abordagem Ética e Humanizada
Avaliar a dor em pessoas não comunicantes não é apenas uma questão técnica, mas também ética. É reconhecer que todos têm direito ao alívio do sofrimento, independentemente da sua capacidade de o expressar.

Significa respeitar a dignidade da pessoa, considerar o seu historial, crenças, preferências e proporcionar cuidados centrados na pessoa. Uma abordagem humanizada exige:

  • Tempo
  • Observação atenta
  • Diálogo com a família
  • Formação contínua dos profissionais
  • Trabalho interdisciplinar

A dor na pessoa não comunicante é um território complexo, onde o silêncio exige interpretação e o sofrimento pode passar despercebido. Apesar das dificuldades, é possível — e essencial — identificar e aliviar a dor. Através da observação cuidadosa, do uso de escalas apropriadas, da colaboração entre cuidadores e de uma abordagem ética e humanizada, podemos garantir que mesmo aqueles que não conseguem falar são ouvidos.

Porque a dor que não se comunica também merece ser tratada. E porque cuidar verdadeiramente é saber escutar para além das palavras.

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